DO INSULTO E DO ELOGIO

Pobres daqueles que acreditam em insultos e desconfiam de elogios

Jorge Forbes

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Existe, eu diria, um fascínio, uma sedução, uma hipnose no insulto. As pessoas ficam hipnotizadas ao serem insultadas. Diferente-mente do elogio, que é sempre questionável, o insulto não deixa dúvida sobre o seu alvo. Há uma tendência a dar peso de verdade ao insulto e a desconfiar do elogio.

Fomos ensinados a não tomar para nós os elogios, a justificá-los como conseqüência de outras pessoas que nos ajudaram, à sorte,ao acaso. A boa educação manda dizer: “Não é bem assim”, “Não é tanto”, “É porque sou seu filho”, “Caiu nas minhas mãos”. Se por um lado desconfia-se do elogio, por outro ninguém põe o insulto sob suspeita. Ele é certeiro.

Por estar prestando uma “homenagem” aquele que elogia se põe a serviço do elogiado: ele se faz “homem a serviço de.” Quem elogia freqüentemente é criticado pelo que disse. Ele corre um risco porque, ao elogiar, fala mais de si que do outro: “Não seja bajulador” “Bonita, ela? Ora, você está cego!”, “Mas como você foi falar uma coisa dessas?!”, “Você vai votar nesse cara?”

Já quem insulta não fala de si. Em geral, o insultante é visto como tendo razão, ele é honesto, é verdadeiro. Por quê? Porque quem insulta toca o ser do outro. O prazer de receber um nome pode ser maior que o desprazer provocado pelo qualificativo desse nome. Quando alguém diz “filho da mãe”, o insultado pode não sentir o destrato suficientemente e dizer que ser filho da mãe não é tão grave.

Mas, se o outro insiste “de uma prostituta”, ele pode reagir e dizer que o insultante exagerou! Da mesma forma que entre a vítima e seu carrasco, há certa cumplicidade entre o insultado e o insultante. A cumplicidade deriva do fato do insultado ter recebido um nome. É melhor ser “filho da mãe” que não ser nada, base do dito “falem mal, mas falem de mim”.

Muitas pessoas dedicam suas vidas a fazer com que se fale mal delas. Nos antigos festivais da música popular brasileira, o Sérgio Ricardo conseguia ser vaiado no começo, no meio e no fim de cada apresentação. Outras pessoas, ao contrário, não admitem o insulto. Numa conhecida apresentação no Rio de Janeiro, Caetano Veloso, elegantemente vestido, ficou furioso sentindo-se insultado, quando alguém lhe disse para tirar a gravata.

Há certo prazer, uma cumplicidade do obsessivo com o insulto. Freud pensava que tal prazer o defende da paranóia. Ao escutar alguém dizer que ele é filho da mãe, o obsessivo imagina que pode ter sido pior. O insulto o defende do superego terrível sempre pior que qualquer insulto social. Nada como o superego para insultar quando se é complacente com ele.

Os homens, de certa forma, são mais dóceis ao insulto que as mulheres. Lembro-me da cena inicial do filme Full Metal Jacket, de Stanley Kubrick. O sargento perfila os recrutas e pergunta a cada um o seu nome. O loirinho com cara de bobo diz: “Sou do interior dos Estados Unidos, chamo-me Michael Backson e estou aqui para servir os Estados Unidos da América”. O sargento retruca: “Você não é nada disso, você é um canalha”. Ele responde: “Yes, Sir”. Assim percebe, no momento em que recebe o insulto, que foi admitido no exército.

O insulto está presente em comunidades onde a identificação de seus membros é pouco clara. Se o insulto marca o ser, quanto menos clara for esta marcação maior a possibilidade de manifestação do insulto. Na comunidade analítica, que toca ao psicanalista de perto, o insulto tem história. Poderíamos dizer que os cem anos da história da psicanálise foram cem anos de insultos, difamações e injúrias. O psicanalista, talvez por força do hábito, tem outra forma de responder à vacuidade do ser e à complacência em face do insulto.

Nota-se uma diferença fundamental entre um congresso de psiquiatras e um de psicanalistas. Os primeiros discutem os mais variados temas, menos o que é ser um psiquiatra. Eles sabem: é alguém que fez seis anos de medicina, dois ou três de especialização, e deram provas de sua pertinência no campo de saúde mental.

Poderíamos dizer o mesmo dos psicólogos, engenheiros, advogados, administradores de empresas, etc. Todos sabem quem são esses profissionais. Mas, e o psicanalista? A extensão do conceito de psicanálise é cheia mas a intensão é vazia.

Sabemos que existem psicanalistas, no plural. Difícil é definir o singular. Querer detectar a diferença entre eles é deparar-se com a dificuldade de apreender a essência. Freud, Lacan, Melanie Klein, Balint e Winnicott foram psicanalistas, mas, o que possuíam em comum na maneira de ser, de escrever, de conduzir as análises? No entanto, todos foram psicanalistas.

Em congressos, não se pára de discutir o que é ser psicanalista. É comum o caso daquele que duvida, um pouco, se ele mesmo é ou não um psicanalista, mas tem absoluta certeza que os outros não são. Vivem dizendo o que falta ao outro para sê-lo: “Falta mais análise”, “Se tivesse feito uma melhor supervisão...”, “Se estudasse mais...”.

Depois de apontar a falta de análise, supervisão e estudo, chegam a uma palavra mágica para dizer o que falta aos analistas: falta ética. Acham que ética é uma qualidade do ser, um estado. E nesse momento, nessas comunidades, vemos o insulto em todo o esplendor.

O insulto pode ser um tema de referência aos questionamentos da “Segunda clínica de Lacan”, “Clínica do gozo”, “Clínica do sintoma”, que se ocupa de saber das possibilidades da palavra captar algo do ser.

Retomo as conseqüências de um caso clínico, descrito em meu trabalho “Ridículas palavras recalcadas”, já algumas vezes comentado.

 

UM CASO CLÍNICO

Descrevo três momentos fundamentais da intervenção analítica.

José, um latino americano, do interior, sentia-se burro em sua casa no meio de seus dois brilhantes irmãos. Em conversas familiares, sempre que tentava falar, ouvia do pai ou dos irmãos que, para expressar sua opinião, teria antes de fazer um curso na USP. José sai de seu país, vai para São Paulo, estuda na USP e torna-se professor nessa universidade.
Ao assistir Forrest Gump, ele se identifica com o personagem – o idiota que dá certo – e começa a se questionar se não teria havido uma outra forma de dar certo na vida sem que necessariamente tivesse de ter feito um curso na USP. Por que todo aquele exaustivo percurso, quando o personagem do filme, “tão idiota quanto ele”, tinha grande sucesso? Ele descobre dessa forma a origem, as razões que o levaram a fazer análise: o fato de se sentir sempre aquém de um projeto. Mesmo se dando conta de suas realizações ele, ainda assim, se sentia aquém de algo. Vivia angustiado, tinha sintomas gástricos sérios, insatisfação e irritação freqüentes, problemas no relacionamento amoroso.

Ele entendeu, naquele momento, a origem do seu mal-estar, concluindo haver encontrado a verdade de sua própria história. Tinha sofrido com os ideais familiares. Ao se submeter à cultura uspiana, pagou com o próprio corpo por aquele ideal e, ao saber disso, pensou que poderia viver de forma mais flexível, com menos censura a respeito de suas realizações. Depois de sair do filme, chorou a noite toda, muito sensibilizado com o que ele tinha vivido. Na primeira sessão de análise do dia seguinte, conta o ocorrido, poderíamos dizer, numa entrega total: “Essa é a minha verdade!” Assim que ele termina o relato, a sessão foi interrompida. Sai chateado com a falta de solidariedade e de apoio ao seu “material” – como se chamava antigamente.

Como uma mãe que entrega o seu bebê nas mãos de uma outra e esta exclama “Que bonitinho!” e abre os braços, José viu cair o bebê, que esperava depositar nos braços do analista-mãe. Volta para uma segunda sessão, profundamente desconfiado. Já sabe que não pode se entregar àquela verdade com tanta emoção, que aquele analista recebe o bebê de braços muito abertos. Ainda assim, relata novamente toda a história, como se fosse um advogado de si mesmo.

Esta segunda sessão poderia ser dividida em dois momentos. No primeiro, José pergunta ao analista: “Você interrompeu a sessão porque você achou que devia, ou porque a sala de espera estava com muita gente?” E a resposta: “Porque eu achei que devia”. O segundo momento – logo depois dele relatar o que sabe sobre sua verdade e seu mal-estar é o da interpretação, a meu ver, marcante nesse tratamento: “Você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo”.

Podemos representar essa interpretação em um esquema elementar, com uma barra sobre o insulto:

“Você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo”

 

I N S U L T O


Alguém poderia pensar: onde está o insulto pois não houve injúria nem difamação?

Em sua origem, o termo “insultar” não significa falar mal de alguém. Do latim, sulto, insultare, tem a mesma origem do termo “saltar”. “Insultar” quer dizer “pular em cima”, “saltar sobre”, fixar um nome a um objeto. “Injuriar” é fazer um julgamento errôneo; e “difamar”, fazer a pessoa parecer diferente do que é, deslocá-la. Com o tempo, verificou-se que, ao se falar mal de uma pessoa, insulta-se bem. Desta forma, na transformação verificada na língua, “insultar” tornou-se sinônimo de falar mal de alguém.

Isso explica também porque, numa relação sexual, nos segundos anteriores ao orgasmo, insultar não significa falar mal. Nesse momento, certas falas podem dar excelência ao coito. Às vezes, o orgasmo é melhor atingido com palavras coadjuvantes que em silêncio. A exceção fica por conta de pessoas que falam línguas diferentes. Por não terem o mesmo registro afetivo, certas palavras indicadoras de carinho ou de sensualidade numa língua podem tornar-se extremamente ridículas em outra. “Insultar” seria então saltar sobre, pôr um nome sobre uma pessoa, etiquetá-la.

Por que, então, dizer “Você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo”? Porque, às vezes, mesmo uma bela história pode se tornar um insulto e fixar o sujeito a um ponto. O insulto é o oposto da liberdade, mesmo que seja um “bom insulto”. Nesta perspectiva, quando um elogio fixa o objeto elogiado num determinado ponto, mata o objeto, tanto quanto o insulto. Mesmo quando o elogio está dirigido a uma pessoa viva, a quem procura dignificar, ele pode mortificar, deixando-a constrangida.

Do que se conclui que o maior dos elogios é o elogio fúnebre; momento em que se fixa um nome a um corpo: “aqui jaz...” Não tenhamos dúvidas, o elogio fúnebre fala daquilo lá.

Os políticos costumam empregar o elogio como forma de calar a boca do adversário: “Você que é muito inteligente, que tem grande experiência na administração e já passou pelas agruras de um administrador público, sabe que tenho razão”. Se o outro negar e disser que não tem, estará admitindo que é um mau administrador, sem experiência. É o jogo da oratória política vulgar, banal, utilizado com muita freqüência.

O fato do analista ter interrompido a sessão de José e feito aquela interpretação funcionou como alerta para se desconfiar das boas descobertas a respeito de si. Tais descobertas também podem ser insultantes.

Nenhuma boa história é capaz de dignificar a coisa sexual. È uma fórmula semelhante à defendida por Lacan no Seminário 17, a ética da psicanálise, quando ele diz que a psicanálise eleva o objeto à dignidade da coisa. Toda explicação da coisa é indigna porque deixa algo de fora. A psicanálise convida a que se sustente dignamente a sexualidade, na trajetória da vida. E não de forma indigna, difamada ou deslocada, como as que Freud examinou nos textos sobre a “Psicologia do Amor” (1910): homens e mulheres se destratam na intolerância do “encontro”. Digo que há um encontro quando se pode suportar a surpresa. Neuróticos, perversos e psicóticos são pessoas que não se surpreendem, que perderam a capacidade da surpresa. Ao fazer aquela interpretação, houve, por parte do analista, uma indicação de que, se existe um saber que se adquire na análise, existe também algo que tem de ser deixado de fora desse saber.

A partir desse caso, propus um matema: no primeiro período, José sabia que veio da América Latina, de uma família com dois irmãos. Sabia de sua história como cada um sabe um pouco da sua. Ele tinha um saber positivo (S+), mas um saber que não o tocava, uma verdade negativa (V-).

Localizo uma mudança no período entre assistir ao filme Forrest Gump até à sessão de análise, onde surge um saber positivo e uma verdade positiva (S+,V+). O insulto aparece nesse ponto, o justo saber a respeito de uma pessoa. É falar a verdade, justamente: “Você é isso”.

A interpretação “você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo” põe em dúvida esse saber, põe nele um menos (S-), limitando-o, mantendo o positivo da verdade (V+). Insisto nesse ponto: a interpretação analítica da segunda clínica de Lacan não aponta o ilimitado do saber, como em Freud, e até bem recentemente. Ao contrário, ela marca uma limitação do saber. Observe-se essa mudança notável na psicanálise, hoje em dia. Explicarei os demais pontos desse quadro mais adiante.

Entre 1950 e 1960, o fim de uma análise representava o fim da criatividade do analista, sua impossibilidade de sacar da cartola mágica novas significações sobre seu analisando. Havia analistas que capitulavam frente ao fato e sugeriam que o analisando procurasse outro analista mais criativo.

Esperava-se sempre que o inconsciente salvasse o sujeito de suas besteiras. O culpado era sempre ele: “Só se foi inconscientemente...” Era o 007 que, com sua carteirinha, podia fazer qualquer coisa, por se tratar de um agente especial. Os analisandos eram todos agentes especiais do inconsciente. Dizer que estava em análise era uma forma de explicar os tresloucamentos. Isso fazia com que maridos e mulheres insistissem para que seus respectivos entrassem em análise, e, em seguida, para que saíssem...

Jacques-Alain Miller chamou essa nova interpretação analítica, que põe limite à significação, de “Interpretação pelo avesso”. O analista colocava um basta ao sentido. Na interpretação “você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo” há uma limitação: Chega! “Eu não lhe acompanho nessa história, nas significações que você está procurando”. Limitar o saber é uma forma de manter a verdade desatada, o que faz com que uma análise vá do saber ao verdadeiro. Faz-se uma disjunção entre saber e verdade, ao dizer que existe uma verdade incômoda a todo saber.

 

A CLÍNICA LACANIANA

Três momentos diferentes da clínica de Lacan foram catalogados num texto de Jacques-Alain Miller, L’Apparole, publicado na revista da Escola da Causa Freudiana (nº34), e a partir dele proponho uma leitura.

O primeiro momento seria o da “vontade de reconhecimento”. Lacan valia-se de Hegel. A análise era conduzida por meio da vontade do reconhecimento do desejo, as pessoas sofriam porque queriam ser reconhecidas. A base esteve em Hegel: o conflito do homem, a dialética entre o senhor e o escravo, baseia-se no reconhecimento.

Lacan aplica essa dialética à psicanálise, em seus primeiros textos, mais especificamente em conceitos como o Outro. O modelo da luta por prestígio mostra essa proximidade com os conceitos hegelianos, posteriormente abandonada.

No Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), no capítulo XVI, Lacan distancia-se claramente de Hegel: “Eu penso contra Hegel, de forma diferente dele”. André Green ali presente, e que hoje se apresenta como ”pós-lacaniano”, sai-se com esta interpretação selvagem: “É o filho matando o pai”.

O segundo momento seria o da “vontade de dizer” baseado na psicanálise como uma prática do diálogo. É ainda na primeira clínica de Lacan, sustentada ao “inconsciente estruturado como uma linguagem”, que surge a questão do sujeito se acoplar “corretamente” à palavra. O sujeito dividido, representado entre dois significantes:

No terceiro momento – segunda clínica de Lacan – não se trata mais nem da vontade de reconhecimento nem da vontade de dizer. Há um novo ponto de ancoragem da clínica psicanalítica, apontado por Lacan em 1972-73, no Seminário 20, Mais, ainda: a “vontade de gozar”.

São três momentos apresentados de forma simples, mas nem por isso menos precisa. Momentos de impasses, de ultrapassagens de Lacan: ser reconhecido, quer dizer, querer gozar. A cada um desses podemos associar, respectivamente, em Outro completo, barrado e inexistente.


1. O Outro do reconhecimento (A);
2. O Outro barrado ;
3. O Outro que não existe

Ao mostrar as transformações sofridas pela clínica, este esquema recupera a tripartição da estrutura proposta por Lacan: imaginário, simbólico e real. Digamos que hoje a clínica psicanalítica está indo em direção ao real, ao passo que no primeiro e no segundo momento a questão incidia no reconhecimento e na consistência do Outro.

Com o fenômeno da globalização, o mundo pouco se incomoda com o Outro. Se na primeira clínica, tínhamos um sujeito dirigido ao Outro (“Quem não se comunica, se trumbica”), na segunda clínica, esse Outro foi para o espaço. O mundo globalizado não reconhece um Outro que garanta – os ideais se romperam, não existe mais nenhum termômetro que garanta o dizer.

Num mundo onde o Outro não existe , qual resposta pode encontrar um sujeito que tropeça com o real? Se no primeiro momento é “reconheça-me dentro de uma identidade” e no segundo “reconheça-me dentro de uma alteridade”, no terceiro seria “reconheça-me dentro de mim mesmo?”

Mas o que seria este ser do “mim mesmo”? A única resposta: este ser goza. E não se tem nenhum controle sobre esse gozo. As doenças da modernidades são doenças que chamei do curto-circuito do gozo, daqueles que vão direto ao prazer sem intermediários. Elas são conseqüências do curto-circuito da palavra – cirto-circuitam a palavra. Não é de se estranhar, no mundo globalizado, o crescimento de doenças ao mesmo tempo individuais e sociais tais como a anorexia, a toxicomania, os crimes hediondos, os atos delinqüentes, as doenças psicossomáticas? São todos exemplos do curto-circuito do gozo. Os clínicos ouvem com respeito esses nomes porque conhecem as dificuldades desses casos, sabem que quando surgem, seja no consultório, no ambulatório ou no hospital, eles dão trabalho. Como ter acesso às doenças do curto-circuito do gozo? É aí que toda tecnologia está se debatendo.

Em geral, essas doenças são formas de apreensão da verdade. Elas tratam uma verdade, mas não através do saber. Antes, tratava-se a verdade pelo saber, era um mecanismo de abordagem pelo recalque.
Freud construiu a psicanálise como teoria e técnica de tratamento dos efeitos do recalque. Para ele, todo ser humano teria tido um dia na sua vida uma experiência de satisfação, muitas vezes representada pelo aleitamento, pela presença de alguém, de um corpo, de uma situação que completava. Ao longo de sua vida, o sujeito perde essa sensação de bem-estar, quando surgem situações que diferem da primeira e chega uma outra pessoa que não aquela. Ao se deparar com o Outro, ele percebe que não é um, que não é inteiro. Por isso já se disse que o neurótico não gosta de surpresas. Diante do inesperado, ele se aferra ao mesmo: “Você mudou de perfume?” As crianças, por exemplo, destestam que lhes contem outras histórias. Se alguém narra-lhes a história da Cinderela, no dia seguinte vão querer ouvi-la novamente, com os mesmos detalhes. A primeira narração é uma forma de insultar, de fixar o ser. Ocorreu, naquele momento, um recalque da experiência de satisfação, algo que se perdeu, se recalcou.

A partir do recalque construiu-se a psicopatologia que dele se depreende: neurose, psicose e perversão. Na neurose, acredita-se que se vai recuperar algo que se perdeu. Por isso o neurótico pensa que amanhã será melhor, sempre adiando decisões. É, por excelência, o indeciso. Já que decidir implica uma perda, não suporta se decidir, procurando alguém que o faça por ele. Na perversão, não é necessário o recalque porque o sujeito mantém uma satisfação contínua. Na psicose, há um “defeito do recalque”. A essa psicopatologia chamamos a primeira clínica de Lacan, a clínica estrutural, e que funciona bastante bem.

Trabalhei, em seminário anterior, o recalque com uma ficção. Não é a mesma coisa ter a “Outra cena” como uma ficção ou tomar um tranqüilizante. Enquanto o tranqüilizante serve para todos e tem garantia científica, a outra cena funciona individualmente, é cena para um e é garantida apenas na palavra do sujeito. Importa essa diferença: o tranqüilizante é um insulto que se generalizou, fixou, avalizou e deu garantia. Da mesma maneira que chamar alguém de “filho da mãe”, o tranqüilizante marca um atributo do sujeito: “Você é um deprimido”. O tranqüilizante também nomeia, prescreve. “Prescrever” significa escrever previamente, “fixar”, “limitar”, “marcar”; assim como “insultar”, significa saltar em cima. Então, nós médicos, baseados na terminologia latina, ao prescrever, poderia se compreender: “Insulto tal coisa a tal pessoa”.

No texto Inibição, sintoma e angústia, em 1925, ao rever o caso Hans, Freud descobre que a fobia de seu paciente não é explicável pelo recalque. E, curiosamente, ele recupera algo muito antigo, a teoria da defesa, em que a pulsão não é tratada pelo saber. É a teoria da pulsão não recalcada, de algo que escapa do domínio, do poder do recalque.
Interessa a Lacan retomar essa vertente em Freud, para responder ao que hoje chamamos “Clínica dos inclassificáveis”, do mal-estar que não é classificável na psicopatologia clássica estruturalista da psicanálise (neurose, psicose e perversão). Como responder a fenômenos como a psicossomática, as drogas, a delinqüência fortuita, o fracasso escolar?

Os alunos de hoje não são mais rebeldes como os de ontem. Rebeldes foram aqueles que fizeram a passeata em 68, que foram à “Maria Antonia”, protestaram e, hoje, orgulham-se do passado. Esses sim, “fomos” rebeldes. Se os alunos de hoje entregam a prova em branco; os de ontem entregavam um tratado. Entregam a prova em branco e dizem “Não sei”. Não há a menor vontade nesse gesto. Há desinteresse. O gozo não passa por aí. Os esportes de ação ganham cada vez mais importância: o alpinismo, a descida das corredeiras, o jogar-se da ponte da avenida Dr. Arnaldo aos domingos. Todos acompanharam o principezinho, o filho de Charles e Diana, ser descoberto pelo pai descendo pelas paredes de uma usina, o que não fica bem a um principezinho.

Para discutir essa questão da segunda clínica e do risco do insulto, trouxe o exemplo de alguém, rigorosamente insultado na vida, já que esteve num campo de concentração. Na história humana, não há insulto, difamação maior que Holocausto. A espécie humana jamais foi tão insultada. Jovens que sobreviveram a tal experiência perguntaram-se inúmeras vezes se testemunhariam ou não tal vivência.

Destaco o exemplo do Primo Levi, italiano de Turim nascido em 1919, químico brilhante, preso em 1943 e que, por ser químico, trabalhou num campo de concentração na Itália. Em 1944, vai para Auschwitz e, em 1947, escreve um livro chamado Isto é um homem?, recusado pelo seu editor. Esse livro mereceu uma segunda edição apenas em 1957. Finalmente, transformou-se num dos clássicos da literatura mundial pela qualidade da escrita, pela verdade de sua posição e pela não dramatização de seu texto. É o relato do dia a dia de uma pessoa sendo progressivamente insultada. No entanto, em 1987, todos sabem, Primo Levi suicidou-se. Por que?

Se nos basearmos em outro autor que passou por um campo de concentração, Jorge Semprun, de origem espanhola, diremos com ele, em seu livro A escrita ou a vida (1994, Companhia das Letras), que Primo Levi suicidou-se porque não tinha mais o que fazer. O restante da dignidade humana – se é que resta alguma dignidade depois de um campo de concentração – recusa-se de forma absoluta a uma sociedade capaz de fazer o que fez a seus cidadãos. Jorge Semprun afirma que, se escrevesse o que viveu em Buchenwald, “Bosque de Faias”, nome maldito, não poderia mais viver: “Se eu disser o que aconteceu, perco a vida”. Levou quarenta anos para conseguir escrever o livro: A escrita ou a vida. Acabou de lançar outro Adieu, vive clarté... (Adeus, viva a clareza..., Gallimard).

Como continuar a viver quando se teve a infelicidade de sofrer o pior insulto do mundo sem poder respondê-lo, e sem ao menos poder desvalorizar sua gravidade? É um problema enorme para quem esteve num campo de concentração. Como continuar freqüentando festas, por exemplo, e suportar ser cobrado pelos outros? Torna-se um problema perder um parente e ter uma festa daí a um mês: a tristeza e o recolhimento lhe são cobrados. Como pode ainda existir vida depois de ter vivido tudo isso? Para primo Levi não houve essa possibilidade, para Semprun sim.

Ele se deu conta finalmente que todos os personagens de sua vasta obra literária nada mais eram que cadáveres inventados, um engodo que ele agitava tal como o pano do toureiro frente ao touro mortal: “É dessa maneira que eu me esquivava, que eu a distraia. O tempo que a morte perdia – tão brava e estúpida quanto um touro de combate – em adivinhar que mais uma vez só tinha conquistado um simulacro, era para mim uma vitória, eu ganhava tempo”. Os personagens de seus romances funcionavam como se, no momento em que o balão tivesse perdendo altitude, ele jogasse um saquinho de areia e, o balão tornava a subir. Quando a morte se aproximava, jogava outro saquinho, ia alimentando-a por meio das figuras de seus romances. Finalmente, ele descobre: “A morte enfiava os seus dentes sobre cadáveres de sonho”. Um grande escritor. Cadáveres de sonhos são fantasias que as pessoas oferecem à morte.

Por que Adeus, viva a clareza...? Semprun explica: “Eu não gostava da idéia de ser confinado no papel de sobrevivente, de testemunha digna de fé, de estima e de compaixão. A angústia me tomava pelo fato de ter que representar esse papel com a dignidade, a justa medida e a compostura de um sobrevivente apresentável: humanamente e politicamente correto. Eu não queria ser obrigado a viver para sempre nessa memória... “ É alguém que diz basta de acreditar muito “nisto tudo”: “Eu me irritava com os obstáculos que minha memória impunha à minha imaginação pitoresca. Uma vida muito aventurosa, muito carregada de sentido por vezes barrou os caminhos da intenção, levou-me a mim, enquanto eu pretendia inventar o outro, me aventurar no território imenso de estar além, de ser-outro.”

“De certa maneira, eu não poderia ser escritor” (...) “Esse livro é o relato da descoberta da adolescência e do exílio, dos mistérios de Paris, do mundo, da feminilidade” (...) “A experiência Buchenwald não está presente aqui, nem lança nenhuma sombra. Também nenhuma luz. Está aí porque escrevendo Adeus viva a clareza..., pareceu-me reencontrar uma liberdade perdida”.

Semprun conta como se sentia aos quinze anos de idade, antes de ser pego na armadilha da Gestapo, antes de ter vivido naquele block 56: (...) “Eu era então esse menino de quinze anos que descobria o borbulhante infortúnio da vida, suas alegrias, esquisitas, em Paris, entre as duas guerras, de sua adolescência. Aí estou eu de novo”.
É como encerro: “Aí estou eu de novo”.

da revista: Revista de Psicanálise e Cultura Dora
Ano 2 – nº 2 – Agosto – 1999.