A Honra e o Sentido da Vida

Ariel Bogochvol

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Vou abordar o artigo A Honra e o Sentido da Vida, que se insere nas Conferências, e é um dos temas desenvolvidos no Seminário de 2003 Vergonha, Honra e Luxo.

“O mundo tornou-se um porre”. É a primeira afirmação da conferência. A honra - um tema gasto, perdido - é convocada como uma forma de se contrapor ao porre do mundo, à sua banalização. É interessante que retome, em plena pós-modernidade, um tema de capa-espada e dos folhetins.

“A honra é um tema da aristocracia e nobreza decadentes”, pensava eu ante o anúncio do seminário de Jorge Forbes à época. “A honra é um tema presente e insistente”, me dizia Sonia Ferraz antes de entrarmos no módulo do Projeto Análise, a propósito do julgamento de crimes cometidos em nome da honra. A honra – pude constatar – é um tema visceralmente lacaniano.

Há farta documentação referente aos costumes da aristocracia e nobreza dos antigos regimes. Renato Janine Ribeiro lançou em 1998 um brilhante e delicioso ensaio sobre A Etiqueta no Antigo Regime. No livro, cita, entre outros, a coletânea Honra e Vergonha, valores das sociedades mediterrâneas, publicada em 1965 por Peristiani

As definições variam, mas honra refere-se à reputação que um homem constrói com base no que se mostra de seus atos e qualidades.

Jorge Forbes não pretende tratar da honra condecorável, mas de um “aspecto íntimo e silencioso do sujeito que o orienta a tal ponto que a perda deste aspecto desmerece a própria vida”. Não pretende se manter no discurso estrito de uma classe, mas tomar um de seus brasões.

Há pessoas para quem a honra muda o sentido da vida; há também os adeptos do primum vivere. Há uma grande diferença entre a vida baseada na honra e a vida baseada no primum vivere. A vida baseada na honra muda o sentido da morte e, portanto, da vida. Vive-se, morre-se e mata-se pela honra.

A morte pela honra é um triunfo sobre a morte biológica, é a morte em nome de algo que ultrapassa a vida, um para-além-da-vida-e-da-morte. A morte pela honra é, em certo sentido, um triunfo do simbólico sobre o real. É o tema das duas mortes trabalhado em várias ocasiões por Lacan.

A honra é um elemento que recobre a vergonha, é para quem tem vergonha. Em linguagem vulgar, os sem-vergonha não tem honra. Há uma vergonha fundamental, primordial, real, um ponto de pudor que seria anterior ao Olhar do Outro ( do sujeito que é olhado olhando) que a honra vai recobrir.

Morrer-de-vergonha, algo que raramente ocorre, faz parceria com o morrer-pela-honra. O exemplo é Vatel ( representado no cinema por Gerard Depardieu), maitre d’hotel, que se mata quando sua grande recepção à Luís XIV fracassa.

O aristocrata é alguém que deve obrigações a um aspecto identificatório que o designa, mas não lhe pertence. Há “um algo mais forte que o eu” que é, ao mesmo tempo, o mais íntimo de si mesmo, uma razão-de-ser. Fala-se do pundonor, do ponto de honra.

O pundonor tem como horizonte um-além-da-vida-da morte. O duelo não é indiferente à sua natureza: morre-se pela honra, mata-se pela honra.

O sujeito é representado por um significante-mestre S1 que o articula com a rede geral de todos os significantes, com a linguagem, que lhe confere um lugar. É êxtimo e, ao mesmo tempo, íntimo: sua singularidade, seu traço, seu ponto.

O ex. é Édipo que, despojado de tudo, se revolta por não lhe terem oferecido, em um jantar, a parte do carneiro que lhe era devida por sua posição. Há os que suportam este traço e o comum dos mortais.

Um sujeito busca uma análise para poder suportá-lo, i.é, para deixar de ser o comum dos mortais. Busca ser um nobre, um aristocrata.

Nas sociedades da corte, a honra é propriedade da nobreza: a sociedade está dividida em homens de honra e plebeus. Deriva do sangue. O nobre é, por definição e hereditariedade, fidalgo, filho d’algo.

Na medida em que as sociedades se tornam mais complexas, tornam-se mais sofisticados os critérios através dos quais se atribui honra ou nobreza a alguém. Em um certo momento histórico é a virtude que fará a vera nobilitas, a verdadeira nobreza.

A virtude se torna o primeiro título de nobreza: quem comprovou a própria excelência nas armas e no saber deve ser honrado. O valor pessoal enobrece. Isto possibilitará a renovação da nobreza, alcançada agora hereditariamente e também por méritos pessoais. É na virtude que a maior parte dos textos funda a honra.

A psicanálise, pode-se dizer, democratiza o acesso à nobreza na medida em que possibilita ao sujeito encontrar sua própria virtude, singular, intransferível, e sustentá-la. O psicanalisante busca se diferenciar do comum dos mortais. A nobreza depende da coragem de sustentar seu desejo; há uma nobreza do desejo. Isto não é para todos. Gide é um exemplo.

Jorge Forbes introduz, através de um texto de Giorgio Agambem publicado no caderno Mais do jornal A Folha de S. Paulo, o estudo sobre o “estado de exceção”. O exemplo agora é Carl Schmitt.

Seguindo uma idéia de J-A Miller, articula o pensamento do jurista Carl Schmitt – um dos ideólogos do regime hitlerista ( um exemplo politicamente incorreto!!!) – sobre o estado de exceção com o estado de exceção buscado em uma psicanálise. Identifica o aristocrata ao psicanalista e ao psicanalisando, como aqueles que suportam a exceção.

É uma função do analista provocar a exceção; ele é o operador de uma exceção. Para tanto, encarna a radical diferença, a exceção por excelência. A parceria analista-analisando, na provocação e procura da radical diferença, é uma parceria que se dá na no terreno da nobreza.

O traço da nobreza é portado por cada um dos parceiros de uma forma particular, nos vários momentos em que se desdobra uma análise. Há uma nobreza no início – fazer uma análise implica um não se contentar com o primum vivere- e no final de uma análise. Há uma nobreza que perpassa, do começo ao fim, a posição do analista.

Há, é evidente, uma questão ética, mas Jorge Forbes não se limita a fazer desta questão um problema do estilo de vida simplesmente. Como Montesquieu, articula a ética, a etiqueta e a política. A nobreza, no limite, é uma questão política.

O exemplo agora é Mirabeau, o Político, de Ortega e Gasset. Como “um homem alheio às chancelarias, ocupado em um tráfico perpétuo de amores turbulentos, de pleitos, de canalhice, que roda de prisão em prisão(...) acaba se convertendo em um homem público e improvise toda uma política nova que viria a ser a política do séc XIX”?

O traço de nobreza não se encarna nas pequenas virtudes, mas nas grandes virtudes. Mirabeau, um devasso, deve permanecer no Panteão pois “não ocorre contestar o título de virtudes à (...) veracidade, à moderação sexual. São sem dúvida virtudes. Mas pequenas. Diante delas encontram(se) as virtudes criadoras de grandes dimensões, as virtudes magnânimas.” Porque deveria prevalecer uma imparcialidade imoral em favor do pequeno?

Há um elogio ao Político, às virtudes do Político e não às pequenas virtudes da vida privada. “Para Mirabeau viver era responder imediatamente com uma ação (...) Refletia depois de estar fora de si, envolvido com a ação(...) Não questionava seus atos, salvo depois de se achar dentro deles e seu pensamento servia para aperfeiçoar a execução. Só podia viver uma vida executiva”.

O Príncipe de Maquiavel, tema de um evento organizado por Jorge Forbes e Renato Janine algum tempo após seu seminário, poderia ser colocado na série com Vatel, Gide, Mirabeau, Carl Schmitt. O que Maquiavel diria ao Príncipe na atualidade? Na pós-modernidade, cada um deveria encarnar o Príncipe, a exceção, o traço particular, a nobreza, o Político.

Jorge Forbes faz uma mostração dos embricamentos existentes entre o analítico, o ético e o político. A análise implica em uma posição ética e política e resulta em uma posição ética e política. Há um atravessamento dos planos. Analista e analisante estão engajados em uma dimensão que ultrapassa em muito a relação intra-muros.

O percurso de uma análise implica na transformação do escravo hegeliano no Príncipe de Maquiavel.

Ao final da leitura nos damos conta de que um percurso surpreendente foi realizado. Atravessamos muitas dimensões até chegar no ponto que relaciona a operação analítica à promoção do Príncipe de Maquiavel.

Para Jorge Forbes o final de uma análise coincide com a possibilidade de um sujeito, sustentando e sustentado por seu estilo, realizar o ato político. Ato singular, único, nobre, exceção, efeito da pura diferença.

Seus heróis são personagens solitários, alguns com fim trágico. Não são quaisquer heróis. Não são, por ex., os heróis da esquerda, os revolucionários, que foram/são meus heróis, portadores de um outro tipo de nobreza.

Jorge Forbes, sustentado/sustentando seu S1, insere-se na série fora de série de seus heróis.

Ariel Bogochvol