JACQUES LACAN, O ANALISTA DO FUTURO

Jorge Forbes

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Capa do livro Tal

É curioso falar de um analista do futuro quando nos acostumamos a pensar em psicanalistas do passado.  A idéia de que fazer análise seja remexer no velho baú da infância contribuiu para montarmos uma caricatura do psicanalista semelhante à antiga imagem do guarda-livros – uma pessoa empoeirada e opaca.

Jacques Lacan, de quem já celebramos o centenário de nascimento, é muito diferente dos modelos que podemos construir hollywoodianamente.  Em vida, ele soube romper com todas as expectativas aprisionadoras.  Após sua morte, sua obra continua surpreendendo pela novidade.  E, como se não bastasse o já publicado, há também os Novos Escritos, volume de seiscentas páginas que vêm se adicionar às anteriores.

Lacan é um clássico, no sentido de um pensador que resiste ao tempo por não se deixar apreender em nenhuma interpretação classificatória.  Sempre há mais Lacan do que aquilo que se pode apreender, da mesma maneira que há sempre mais Sófocles do que qualquer representação de Édipo Rei, ou mais Shakespeare, ou mais Van Gogh, ou mais Drummond, ou mais Tarsila.  Essas pessoas não morrem porque não há túmulo que as contenha, não há palavra que as explique.  Se Foucault tinha razão ao dizer que a palavra é a morte da coisa, os clássicos são mais coisa do que palavra, e por isso falamos deles sem esgotá-los.

Lacan evitou que a psicanálise se transformasse em método tolo de adaptação social, armadilha à qual, infelizmente, alguns pós-freudianos não conseguiram escapar.  Ele pôs o futuro na psicanálise.  Demonstrou que as tentativas de explicação de si mesmo acabam, inevitavelmente, em um ponto duro, real, resistente – como em física fala-se em resistência dos materiais – a qualquer nomeação, semelhante ao “que será que será que nunca tem nome nem nunca terá”, cantado por Chico e Milton.

Na impossibilidade de se garantir por meio de uma explicação causalista e reducionista do passado, o analisando é levado, na orientação lacaniana, a inventar-se um futuro, sem nenhuma outra razão além daquela do desejo.  É uma posição nem sempre muito confortável, apesar de entusiasmante, pois trata-se de uma invenção sem garantia repartida, sem o beneplácito da aceitação grupal, seja de que grupo for.  Atenção: que não se pense ou se confunda essa invenção do futuro, na lógica do desejo, com individualismo barato ou hedonismo de ocasião.

A análise lacaniana parece a mais coerente com as conseqüências da globalização sobre as pessoas, com o sujeito pós-moderno.  Vivemos um momento de transição histórica do sujeito da era industrial para o da era da globalização.  O sujeito industrial caracterizou-se pelo privilégio do eixo vertical das identificações.  É o que explica a organização piramidal da sociedade industrial, presente na família e nas corporações dessa época.  Para entender esse sujeito, a estrutura do complexo de Édipo proposta por Freud mostrou toda a sua importância.

O complexo de Édipo também é uma estrutura que privilegia o eixo vertical das identificações – basta ver o papel fundamental que o pai tem nesse modelo.  Agora, quando entramos na globalização, quando o sujeito não mais se dedica a ser parte de um grande ideal – não há mais grandes ideais -, quando a horizontalidade é mais importante do que a verticalidade anterior, Lacan propõe que uma análise possa ser conduzida além do Édipo, além das significações consagradas no ideal paterno e de seus representantes.  É a análise do futuro, de um sujeito de uma nova era.  Estamos começando a desbravar esse caminho, seguindo as pistas deixadas por Lacan.

De seu legado, eu poria em relevo três expressões: “conseqüência”, “responsabilidade” e “novo amor”.

“Conseqüência” porque, contrariamente ao que possa parecer, palavras não são só palavras.  Não há nada a ser buscado além delas e sim nelas, como os poetas que renovam o termo mais banal dando-lhe uma nova dimensão.  O analista empresta conseqüência às palavras do analisando.

“Responsabilidade” não no sentido moral, mas no sentido ético.  Lacan diferencia moral – usos e costumes – de ética, posição subjetiva.  A psicanálise lacaniana ensina que não há como não se responsabilizar pelo acaso e pela surpresa.  A pessoa não é só o que escolhe, voluntariamente livre, mas também o que lhe ocorre: “Eu sou o meu acontecimento”.

“Novo amor”: a psicanálise, dizia Lacan, não foi capaz de inventar um novo pecado, uma nova perversão.  Talvez seja capaz de inventar um novo amor, que não seja voltado ao pai em última instância, mas que, sabendo dele se servir, possa ir além do chamado (em psicanálise, gozo fálico) e captar algo do real feminino.

Tanto a globalização quanto a psicanálise de hoje revelam que entramos em um novo momento, mais propício à essência feminina.  Muito da epidemia depressiva de nossos dias fica esclarecido pela desorientação ocasionada pela perda da orientação masculina.

Lacan previu esses acontecimentos e deixou os instrumentos para tratá-los.  Foi um analista do futuro.

 

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                        Editora Best Seller, 2003