NÓS ESTAMOS SEMPRE ENTRE VÁRIOS

Maria Eugênia Nabuco


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Todo psicanalista em instituição não pratica entre vários sem que necessariamente o saiba, assim como M. Jourdain fazia com a prosa. Essa perspectiva nos permite generalizar a prática entre vários e abrir uma nova via para a Psicanálise Aplicada, em sua oposição à psicoterapia. Lacan, em Televisão, afirma que uma prática não precisa ser esclarecida para operar (2001: 503). É o modo de resposta do profissional, seu modo de operar, que decide, a posteriori, se há ou não a verdadeira psicanálise em seu ato.

Vejamos como os princípios da prática entre vários contribuíram para a construção de uma clínica com crianças psicóticas, em um centro de atendimento psicológico para crianças e adolescentes, situado em Claye Souilly, região de Sena e Marne – Intersetor de pedopsiquiatria. Sua equipe é constituída por uma pedopsiquiatra-psicanalista diretora do centro, quatro outros psicanalistas, responsáveis pelas consultas, bem como, uma assistente social, uma psicomotricista, uma fonoaudióloga e uma secretária.

É nesse contexto que Mathias nos foi encaminhado pelo médico-chefe do setor, em setembro de 2000, com quatro anos de idade, por causa de sua psicose. Durante as primeiras entrevistas, o menino vinha acompanhado de seus pais, que se queixavam de todos os médicos e professores. Eles estavam mesmo decididos a fazer uma queixa junto ao Ministro da Educação. Com efeito, seu filho fora excluído da escola e, no setor, não havia lugar em instituição especializada. No hospital Saint Vincent de Paul, onde Mathias ficou hospitalizado 18 dias para um check-up diagnóstico e terapêutico, seus pais foram impedidos pelos médicos de ter acesso ao dossiê médico. A mãe se queixou do médico-chefe do setor que a acusara de ser a responsável pelas dificuldades de seu filho. Eles não sabiam mais a quem recorrer nem o que fazer com Mathias.

Seu filho não dormia, comia seus excrementos e alimentos muito quentes; ele não queria brincar, não utilizava suas mãos; isolava-se e não dizia senão algumas palavras com voz de menina. À proximidade de uma piscina ou de um riacho, ele se jogava na água sem saber nadar. No momento de uma entrevista quando eu a vi só, a mãe me disse que esse era seu segundo casamento e que, do primeiro, ela teve um filho que morreu subitamente com três meses de idade.

Assim, quando seus quatro filhos, inclusive Mathias, adormeciam no berço, ela os chacoalhava para saber se estavam vivos. Quanto a Mathias, ela o envolvia no seu roupão, para que ele se acalmasse e dormisse.

É em termos de relação e de falta de objeto que se situa o vínculo fantasmático mãe-filho, e Mathias transforma-se no correlativo de um fantasma materno, substituindo o filho morto. Ele encarna a presença daquilo que Lacan designa como o objeto a no fantasma (2001: 373). Ao substituir esse objeto, ele satura a modalidade de falta na qual se especifica o desejo de sua mãe. Estamos diante da configuração de uma psicose infantil. O pai não faz mediação quanto ao gozo da mãe e o filho permanece, assim, aberto à sua apreensão fantasmática.

A queixa dos pais, sobretudo da mãe, durante os primeiros encontros apontava para um Outro segregativo, e é este Outro que eles revelavam a cada consulta. Mathias, durante a primeira entrevista, movimenta-se pela sala e exprime resmungos inarticulados. Então eu me dirijo a ele, dizendo-lhe que é importante que ele possa me falar também daquilo que seu papai e sua mamãe dizem sobre ele. Eu lhe pergunto se ele sabe por que veio me ver, e se ele concorda em retornar, a fim de que possamos descobrir juntos o que lhe ocorre. Ele pega um brinquedo, uma cadeirinha de plástico, onde coloca sentado um pequeno boneco, e a coloca em minha frente, sobre minha mesa. Eu lhe digo que o que ele acaba de fazer é muito importante e que nós iremos nos rever na próxima semana. Os pais ficam estupefatos, mas não fazem nenhuma pergunta. E durante os dois anos seguintes, eles não quiseram saber absolutamente nada sobre Mathias.

Essa forma de me dirigir a Mathias comportava uma estratégia destinada aos pais. De um lado, ela visava à segregação de Mathias, implícita no discurso deles; de outro, estabelecia uma transferência com a criança. Isso permitiu à mãe parar de falar dela mesma nas entrevistas, dando lugar a um discurso sobre Mathias. O outro parental é, assim, situado em posição de saber. O que está em jogo é a verdade desse objeto fantasmático da mãe, no lugar do qual vem seu filho. As entrevistas clínicas ocasionais com os pais respondem a uma necessidade. Trata-se de uma clínica do que se diz e do que se goza no nível do corpo da criança. Era preciso, ainda, apresentar Mathias como um sujeito pleno, imerso na linguagem. E era, também, uma forma de tocar o gozo do Outro, esse gozo que faz da criança apenas um objeto de preocupação. A criança psicótica é comandada por um Outro todo poderoso, e a prática entre vários visa encontrar um modo operatório que não reproduza esse Outro.

Ao fim e ao cabo das primeiras entrevistas, Mathias, que até então permanecera em silêncio, se pôs a emitir sons. Ele vinha acompanhado pelo motorista da ambulância e um acompanhante, e esses se assustavam com seus gritos e choros. Com freqüência, ele era deixado sozinho na sala de espera, o que dificultava nosso trabalho. Além disso, no fim de cada sessão, Mathias não queria ir embora. Ele se deitava de bruços e, num segundo momento, entrava nas outras salas, para pegar objetos que não queria devolver. Uma das terapeutas se sentia obrigada a correr atrás dele para os recuperar.

Se é necessário um Outro para o sujeito psicótico, é preciso lhe propor através de uma perspectiva irônica da linguagem, a qual nos formulou Jacques-Alain Miller em seu texto “Clinique ironique” (1993). Isso supõe inventar intervenções “indiretas” que considerem a singularidade do sujeito, ou ainda usar um estilo de não-resposta e de enigma, compartilhados pela equipe (1994: 9-12). Tais modalidades de intervenção são discutidas nas reuniões de equipe, nas quais, cabe a cada um criar por si mesmo e se responsabilizar.

Foi considerado operatório desde o início que os analistas e os outros três terapeutas – o assistente social, a psicomotricista e o ortofonista, presentes na instituição no dia em que Mathias fosse se consultar – estivessem disponíveis para o trabalho conjunto. O apelo às intervenções múltiplas e aos numerosos recursos de linguagem e de interpelação permitiu a construção de uma clínica da psicose. Nós daremos agora alguns exemplos disso.

Mathias tinha o hábito de entrar na sala da psicomotricista, onde jogava todos os objetos no chão. Ele podia permanecer ali por horas, acompanhando a queda dos objetos com gritos de júbilo. Quando os objetos estavam no chão, ele se colocava de bruços sobre eles. Precisávamos encontrar uma maneira de interferir nessas manifestações, sem, para tanto, atribuir um sentido ou significação ao que se passava. A intenção era permitir a Mathias sair daquele gozo autista, de modo que a manipulação dos objetos adquirisse um sentido metafórico. Nós estávamos disponíveis para essas invenções do sujeito.

Num primeiro momento, eu aproveitei a presença de Mathias na sala da psicomotricista e me dirigi a ela, perguntando-lhe se tinha o direito de entrar em sua sala. Ela respondeu que eu não o tinha e eu acrescentei que utilizaria então, somente a minha sala, a única da qual eu tinha autorização para usar. Num segundo momento, as atividades de psicomotricidade puderam ser propostas a Mathias pela diretora do centro e pela psicomotricista. Foi a maneira que encontramos de lhe permitir uma diferenciação significante em suas manipulações dos objetos.

Quando eu lhe anunciava o fim da sessão, Mathias se colocava sempre de bruços no chão. E foi a partir do dia em que lhe disse que a diretora do centro me havia solicitado assegurar que todas as crianças voltassem para suas casas, para que pudessem retornar noutro dia, que Mathias, apaziguado, pôde, por si mesmo, se levantar e sair da sala. Aqui, temos o fato de que o próprio analista se apresenta como submetido a uma regra, o que pôde evitar a confrontação da criança com o gozo do Outro.

Freqüentemente, Mathias carregava os brinquedos do Centro com ele. E, se lhe solicitássemos que os deixasse, ele era tomado por uma angústia incontornável. Começamos então a nos dirigir aos objetos, perguntando se eles gostariam de ficar em suas próprias casas. Um dia, ele pegara alguns livros do Mickey, os quais queria levar consigo. Ele chorava e vociferava enquanto o motorista da ambulância tentava tirá-los de suas mãos. A fim de incluir o condutor na prática entre vários, eu lhe disse nesse dia que ele tinha razão em considerar que o Centro não fazia empréstimo de livros. Mas que esses livros aceitariam fazer um passeio na ambulância e depois voltarem para casa. O enfermeiro entrou no jogo. No dia seguinte, foi Mathias mesmo quem trouxe os livros.

No início, quando ele chegava ao centro, ele gritava e entrava em minha sala, onde geralmente eu estava com outra criança. Foi solicitando-lhe de vir me dizer que havia chegado, que ele pode começar a esperar na sala de espera.

Pela primeira vez, antes de suas últimas férias, Mathias pôde formular uma frase inteira, construída gramaticalmente: “…Vovô, vovó, mamãe e Mathias viajam de carro nas férias.”

Para concluir, podemos dizer que nós temos instituições que não têm o hábito de uma prática de regulação pelo Outro. Uma imagem que expressa bem essa falta de regulação é aquela de um elefante numa loja de porcelana. Seria necessario de se passar por um “Outro elefante”?

BIBLIOGRAFIA

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traduzido por: Rodrigo Abrantes
corrigido e revisado por: Dalila Lemos e Maria Eugênia Nabuco