RIDÍCULAS PALAVRAS RECALCADAS

Jorge Forbes

versão para imprimir

Psicanálise ou psicoterapia é o tema deste livro. Entre as diversas formas de fazer a diferença, destaca este texto uma: a direção do tratamento. “Dirige-se o tratamento, não o paciente” foi a frase consagrada por Lacan para diferenciar a psicanálise das práticas terapêuticas normativas. Enquanto as psicoterapias derivadas da ética médica são compreensivas para o terapeuta e o paciente, que interagem reciprocamente, a psicanálise, na ética do desejo, estabelece uma clínica surpresiva ao analisando e ao analista.

Este tema é trabalhado através de duas sessões em um mesmo dia. Discutem-se aspectos da direção de uma análise, tais como: a freqüência e o tempo das sessões, a escrita, a interpretação, o silêncio e a lógica do fim e da finalidade. Sustenta-se uma tese elementar: a singularidade do desejo humano pode se representar no ridículo que cada um consegue suportar em sua vida. “Ridícula” é qualquer característica particular não pertencente à norma universal. O ridículo seria um sinal do descompasso entre o homem e a civilização, descrito por Freud.

Incomodado pelo particular de seu desejo, alguém pode querer vestir a sua particularidade como uma roupa conforme ao hábito de todos – é a função do sintoma neurótico: conformar-se à expectativa do outro, cedendo a pessoa em seu desejo.

 

I

 

Aquela pena, caindo entre as árvores sobre o rapaz sentado no banco da praça, com uma cara um pouco abobalhada, pareceu-lhe um lugar comum, um apelo fácil ao sentimento da platéia onde ele estava. José se arrumou em sua poltrona e se preparou para não gostar do filme. Mas, pouco a pouco, o desinteresse foi se modificando, pois José começou a se reconhecer no personagem, tratado como um tonto por sua família, por seus colegas de colégio, e que, no entanto, desajeitadamente, ia obtendo sucesso na vida, sempre de maneira atravessada. O personagem ganhava corridas porque se punha a correr, era modelo para cantor de rock por sua disritmia, depois herói de guerra por inconseqüência, e assim por diante.

O filme que lhe pareceu de início chato e sem interesse foi tomando corpo.

Freud dizia que um sonho parece com o sonhador, em um primeiro momento, desta forma: chato e desinteressante, e que é só conforme as associações que o afeto e o interesse surgem. Pois assim se deu: terminada a sessão – de cinema – José estava lívido, aquela era a sua história. Que imenso esforço, pensou ele, tinha-lhe sido até então imposto para ultrapassar suas deficiências, anunciadas como tais pelos outros.

Na sua casa familiar, em seu pequeno país natal, na América do Sul, o bom sempre estava em outro lugar: no Brasil, em São Paulo, mais precisamente na Universidade de São Paulo. Não havia encontro de família, almoço ou jantar, quando alguém se queixava do confronto com uma situação difícil, que não lhe dissessem: - “Ah, para resolver isso, só fazendo um curso na USP” E aquela USP era tão distante para José... Se ele era àquele ponto tolo, como pretender ir à USP? E, não indo, como iria suportar as dificuldades? Não tinha jeito. A USP era coisa para um ou outro de seus dois brilhantes irmãos; a ele sobrava talvez a sorte.

E, no entanto, paradoxo do destino, José estava na universidade e com sucesso.

Na saída do cinema, ele tentou disfarçar suas lágrimas: de raiva, pelo esforço sofrido em nome de um ideal, e de pena, por autocomiseração.

A hora tardia do final da sessão, meia-noite, não o impediu de querer visitar cada instituto, cada sala freqüentada naqueles últimos anos. Ele já fazia planos para, no dia seguinte, contar a seu analista sua grande descoberta: as razões de seu sofrimento. Queria ir às últimas conseqüências, sentir tudo o que devia sentir, deixar-se invadir pelas memórias afetivas daqueles lugares, às vezes calvários de castigo, às vezes de redenção, sempre religiosos.

Foi difícil entrar no setor de Filosofia tão tarde da noite, mas a porta aberta, amavelmente oferecida por um professor notívago que se retirava, facilitou a empresa. De cada carteira, de cada corredor emanavam as angústias de estar aquém do ideal. Tinha chegado à USP, mas será que a USP era lá?

E do setor de Filosofia foi ao de Antropologia, em conseqüência ao de Sociologia, ao de História... A cada passo, mais clara lhe aparecia sua vida, seu percurso, como se diz. De certa maneira, não era um saber tão novo com o qual se deparava, mas nova era a forte convicção da verdade desses fatos. Freud não dizia que o obsessivo recalca o afeto mas não as idéias, diferente da histérica que recalca os dois?

Enfim, fatigado, extenuado, mas feliz pela boa descoberta, foi dormir. Na manhã seguinte, cedo, verificou se não havia se esquecido de nada do ocorrido na madrugada e que iria relatar a seu analista... Quanta expectativa! Chegada a hora, entrou e imediatamente contou sua noite em todos os detalhes. Ao fazê-lo, começou a notar que não era escutado com o interesse que aguardava. “Será que não estou sendo claro?”, perguntou-se, e buscou reforçar a importância do que dizia. O analista, terminado o relato, sem nada falar, levanta-se, pondo fim à sessão e lhe dando um novo horário para dali a algumas horas. Reencontrando-se no elevador, entre a sideração, a raiva e a frustração, José se perguntou o que era aquilo.

Horas depois, retornando a sua sessão, precavido, não querendo ser de novo surpreendido, de maneira bem objetiva, começou por perguntar se a sessão anterior tinha sido encerrada porque o analista pensava que assim devia fazer ou porque a sala de espera estava cheia. O analista, laconicamente, reponde: “Porque entendi que deveria interromper”. José tenta então lhe explicar o absurdo sofrido, voltando sobre sua história, agora não mais emocionado, mas à maneira de um advogado que exige justiça para a dor de seu cliente. E, assim, em poucos minutos, energicamente, retomou e pôs em ordem os pontos capitais de sua reflexão noturna. Recebeu então nova resposta de seu analista, uma interpretação: - “Pois é, você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo.” A sessão terminou aí e, com ela, uma história.

 

II

 

Gostaria de comentar essa passagem de uma análise em duas vertentes: a do analisando e a do analista, lembrando que o imbricamento sendo tanto, o que será dito para um tem conseqüência para o outro e vice-versa.

Começo então pelo analisando.

Destacaria três momentos distintos na passagem relatada, que sintetizaria nessas proposições:

          Havia um saber, não havia uma verdade.
          Havia um saber, havia uma verdade.
          Não havia um saber, havia uma verdade.

O primeiro momento, “Havia um saber, não havia uma verdade”, corresponde ao fato de que José conhecia suas coordenadas familiares, sabia mas não dava a elas peso de verdade, de importância. E, como já referido, dissociava no recalque obsessivo a “idéia” do “afeto”, o que possibilita uma espécie de convivência irresponsável com o sintoma.

O segundo momento, “Havia um saber, havia uma verdade”, corresponde ao da suspensão do recalque secundário: ele, José, via-se alienado completamente por uma história. Nota-se um misto de responsabilidade e de culpa, em que ele reconhece sua participação, mas culpa o outro por seus tormentos.

Finalmente, no terceiro momento, “Não havia um saber, havia uma verdade”, José fica com uma verdade incompleta, diríamos quanto a sua compreensão, provocada pelo analista: “Você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo”, o que forçou a ir além do recalque secundário, obrigando-o a fabricar um outro tipo de saber para responder à verdade que lhe tocava.

Podemos ver aí um exemplo do que, em 1977, Lacan (1) estabelecia como alvo de uma análise: um significante novo.

O que eu sempre enuncio é que a invenção de um significante é alguma coisa diferente da memória. (...) Nossos significantes são sempre recebidos. Por que não inventar um significante novo? Um significante, por exemplo, que não teria, como o real, nenhuma espécie de sentido?

No caso de José, este vai de sua memória morta a uma memória vivida e, em seguida, a um buraco na memória, o que lhe permite o futuro: o aparecimento de um novo significante.

Em 1908, Freud publica dois textos que têm seu interesse em serem lidos em correspondência: “Romances familiares”(2) e “Escritores criativos e devaneios”.(3) Freud aí se pergunta porque existem histórias que nos aborrecem, ao passo que outras, ao contrário, prendem nossa atenção. Seria em virtude das diferenças dos temas tratados? Haveria alguns mais interessantes do que outros? É o que o bom senso levaria a pensar. Mas, ainda uma vez, o bom senso pensa mal, pois Freud descobre, quanto ao tema, que neuróticos e escritores se referem ao mesmo, ou seja, ao que lhes falta, ao que desejam, com a diferença de que a maneira de desenvolver uma resposta não é a mesma para cada um deles.

A base do romance familiar do neurótico é, diante decepção sofrida com sua família de origem, constituir uma outra mais valiosa, mais adequada aos padrões ideais. No caso de José, ir para a USP.
O escritor criativo, por seu lado, não tem tanta certeza em um ideal. Ele se inventa um lugar e assume a responsabilidade por sua escolha. A particularidade de suas opções permite aos leitores fazerem o mesmo.

Freud destaca a culpa e a vergonha como os fatores que se alteram do neurótico para o escritor criativo:


...A verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma liberação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte desse efeito seja em virtude da possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, deleitarmo-nos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha.(4)

Difícil dizer que, à semelhança de um escritor, o analista leve o analisando a se deleitar com seus devaneios, tal como Freud acaba de enunciar. Entretanto, eles se aproximam no ponto em que uma análise também modifica as auto acusações, a culpa e a vergonha. No lugar da culpa sempre referida a um outro, uma análise conduz à responsabilidade sobre seu próprio gozo.

“Coma seu desein”,(5) fórmula em que Lacan expressou a tarefa do analisando, quereria aqui dizer que nenhuma culpa, arrependimento, castigo ou promessa poderia liberá-lo desta dura obrigação, a de roer o osso de sua existência.

A intervenção do analista, no caso de José, impulsionou-o a sair de seu repetitivo romance familiar, desacreditando suas queixas – “Eles me viam como alguém distraído e pouco inteligente” – e também sua solução – “Tinha de ir para a USP”. Não há uma história que explique uma vida, pois a vida excede todas as histórias.

 

III

 

Passemos agora ao comentário, vertente do analista. Chocou José, ao final da primeira sessão relatada, a pouca, até mesmo nenhuma solidariedade demonstrada pelo analista diante de seu drama. É fato, o analista não é cúmplice da paixão exposta, mas, por sua posição, revela a qualidade, a função de prótese, de obturação da história contada.

É como se ele ridicularizasse, na acepção de realçar o absurdo, a explicação de um sofrimento. Ele questiona a relação de compromisso estabelecida pelo sintoma neurótico. Para ele, nesse sentido, também é válida a descrição que Denis Diderot faz do ator em seu famoso paradoxo:

É o olho do sábio que capta o ridículo de tantas personagens diversas, que o pinta, e que faz rir, quer desses importunos originais de que fostes vítima, quer de vós mesmos. É ele quem vos observa e quem traça a cópia cômica, quer do importuno, quer de vosso suplício.

E ainda:

Mais impressionados (os atores) por nosso ridículo do que tocados por nossos malês, de um espírito bastante sereno ante o espetáculo de um acontecimento lastimável, ou ante o relato de uma aventura patética; isolados, vagabundos, à mercê dos grandes; poucos modos, nenhum amigo, quase sem qualquer dessas santas e doces ligações que nos associam às penas e aos prazeres de outrem que partilha dos nossos.(6)

Realçando o ridículo que existe no invólucro choroso de um sofrimento, o analista colabora para que o analisando não se tome por demais a sério. Dissocia dor e relato da dor, provando que freqüentemente se sofre mais pelo que se conta do que pelo que se sente. Como já sublinhado, a vida excede as dimensões de todas as histórias, sendo o que explica, a meu ver, que as biografias só possam contar a história dos que já morreram. Há sempre um excesso, um ridículo a suportar na vida; o ridículo é o particular que não se encaixa em nenhum universal. São ridículos, por exemplo, os termos de ternura quando ditos em público, os apelidos cúmplices, os carinhos. Aquilo que só serve a um, a dois ou a um pequeno grupo é habitualmente tachado de ridículo.

Evitando o excesso da vida, o sintoma neurótico se oferece como uma roupagem sóbria ao ridículo, ao singular de um desejo. É o que podemos notar a propósito do que chamamos o recalque secundário, no caso de José, sua infortunada história.

Uma análise deveria levar uma pessoa que a realiza a melhor contar o ridículo de sua vida, tal como sugere Fernando Pessoa em um poema escrito por seu heterônimo Álvaro de Campos intitulado: “Todas as cartas de amor”(7). Ele diz assim:

Todas as cartas de amor são
Ridículas
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas

No começo, ao se deparar com o amor, com o que se diz do amor, as cartas de amor são consideradas pelo poeta como ridículas. Depois, pouco a pouco, ele se dá conta de que são aqueles incapazes de escrevê-las que são ridículos. Aí estaria uma metáfora ilustrativa do que quis dizer para uma análise: conseguir, com as palavras para sempre recalcadas, ridículas, escrevê-las em cartas de amor.


Do livro: Psicanálise ou Psicoterapia
                      Editora Papirus, 1997
                      Biblioteca Freudiana Brasileira
         
1. J. Lacan, “Vers um signifiant nouveau”.  Ornicar? 17/18, Lyse/Seuil, 1979.

2. S. Freud, “Romances familiares”.   In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro:  Imago, vol. IX, 1969.

3. S. Freud, “Escritores criativos”.  In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro:  Imago, vol. IX, 1969, p. 158.

4. Ibidem.

5. J. Lacan, “Lê séminaire sur ‘La lettre volée’”.  In: Écrits.  Paris: Seuil, 1966, p. 40.

6. D. Diderot, “Paradoxe sur le comédien”. In: Ouvres. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1951, pp. 1009 e 1036. (Em português, “Paradoxo sobre o comediante”.  Em:  Os pensadores.  São Paulo:  Abril, 1979, pp. 164 e 180.)

7. F. Pessoa, Obra poética.  Rio de Janeiro:  José Aguilar, 1974, pp. 399-400.