ESTUDOS

SOBRE OS "TEMPOS HIPERMODERNOS" *

Elza Mendonça de Macedo

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“A gente quer suar,
mas de prazer”
(Gonzaguinha)

Hipermodernidade** é um conceito criado por Gilles Lipovetsky. Este verbete ainda não faz parte dos dicionários. Les Temps Hypermodernes, Lipovetsky o escreveu em colaboração com Sébastien Charles que, na primeira parte do livro, introduz o leitor ao pensamento de Lipovetsky. Na segunda parte, Lipovetsky desenvolve o conceito de hipermodernidade. E, no final, o autor é entrevistado por seu colaborador.

Lipovetsky cria o conceito de hipermodernidade como uma volta modificada da modernidade e como uma tensão entre o viver o presente e as reações ao futuro. Também envolve um redescobrir e reabilitar o passado. Critica o conceito de pós-modernidade e o coloca como um parêntese entre uma primeira modernidade e outra. Pós-modernidade, um neologismo que porta um equívoco, já que ocorria uma modernização de um novo gênero e não uma ultrapassagem. Frente ao desenvolvimento das tecnologias genéticas, da globalização liberal, a pós-modernidade veio como um conceito que caiu bem, que trazia o novo. A questão é que tanto a hipermodernidade como a pós-modernidade não são categorias discretas, suas fronteiras são difusas. São contemporâneas e interagem. São fluxos e contra-fluxos.

Se o título deste livro já anuncia a questão do tempo na hipermodernidade, o subtítulo, na segunda parte, Temps contre temps ou la societé hypermoderne vem dizer da obsessão moderna com o tempo, decorrência da crescente pressão temporal exercida pela sociedade. Os muito ocupados e os desempregados atestam as desigualdades sociais em relação ao tempo.

Lipovetsky situa a sociedade pós-moderna, contrapondo a ela a hipermodernidade. Aponta como característica da pós-modernidade o abalo dos fundamentos absolutos da racionalidade e falência das grandes ideologias da história. Instala-se a idéia de que se trataria de uma sociedade mais diversa, mais facultativa e menos carregada de expectativas em relação ao futuro. Assim, a temporalidade seria dominada pelo precário e pelo efêmero, primado dos gozos do aqui e agora. Também seria marcada pelo impulso ao consumismo e à comunicação de massa. Esse período se estendeu sob o signo da descompressão “cool” do social, momento em que diminuíram as coações sociais. O hedonismo avança com a individualização das condições de vida, o culto de si e do bem-estar privado.

Esse rótulo “pós-moderno”, segundo Lipovetsky, serviu por um tempo, mas não respondia ao mundo que se apresentava. Tudo hiper, hipercapitalismo, hiperindividualismo. Enquanto nascia o pós-moderno já se esboçava a hipermodernização do mundo.

Passado este parêntese que se chamou pós-modernidade, a despreocupação dá lugar à insegurança, parece que os tempos endureceram novamente e o passado reaparece sob novos traços. Passa-se da era pós para a era hiper. Portanto, um paradoxo. A segunda era da modernidade se mostra auto-reflexiva, individualista-emocional e identitária. Na primeira modernidade a tradição era valorizada, a divisão de papéis sexuais era estruturalmente desigual, a Igreja tinha forte influência nas consciências, era legítimo o sacrifício dos indivíduos pelo ideal da Nação, o Estado administrava grande parte das atividades da vida econômica. Tinha peso a interpretação do ideológico-político. Hoje tudo isso mudou. No lugar das culturas de classes temos a individualidade autônoma. O Estado recua, a sociedade de mercado se impõe. Impera o culto da concorrência econômica e democrática. É a vigência de uma segunda modernidade, desregrada, desinstitucionalizada e globalizada, ímpar e aquém do político. Agora nada é poupado pelas lógicas do extremo. Se a preocupação era o futuro, futuro promissor, agora é o presente. Presente cuja palavra de ordem é a novidade, o consumo, um presente eufórico. Não se caracteriza pela falta, mas pelo excesso. Excesso de bens, de imagens, sons, busca de prazer. Nada de espera e lentidão. Tudo em tempo real. É a compressão do espaço-tempo, as lógicas do tempo curto e do urgente, levadas ao máximo pela sociedade neoliberal informatizada. As manchetes da mídia mostram a tonalidade emocional, marcada pela insegurança, preocupação excessiva com a saúde, terrorismo, etc. Essa segunda fase da modernidade traz o paradoxo da “frivolidade e da ansiedade, da euforia e da vulnerabilidade, do lúdico e do medo”.

A questão é: trata-se de um certo retorno para acertos ou de um recuo? Ou seria a hipermodernidade uma covardia da sociedade frente à pós-modernidade? Ao mesmo tempo em que não há utopia quanto ao progresso contínuo, a esperança no progresso científico é cada vez maior. Modificam-se os estilos de vida em função da saúde e da longevidade. Se a biodiversidade está ameaçada, se há o risco das mudanças climáticas, se a poluição ambiental é um fato, também está havendo o debate coletivo para conciliar progresso, bem-estar, economia e preservação ambiental. Há otimismo na leitura de Lipovetsky sobre a contemporaneidade, onde não há outra opção senão evoluir. Mas a hipermodernidade gera preocupação. Por exemplo, quanto ao Protocolo de Kioto, um documento internacional para evitar a poluição, em que os países se comprometeriam com a diminuição de emissão de monóxido de carbono, Estados Unidos e Rússia, países que mais poluem, não são signatários deste documento. Implicaria em desacelerar o desenvolvimento, a produção industrial, o que não lhes interessa. Isto inviabiliza a resolução do problema do aquecimento climático e, sim, podem ocorrer as catástrofes no futuro. Se há otimismo, há também inquietação. Mesmo que os tempos hipermodernos tenham como eixo o presente, não são apagados os traços do passado e têm a marca de uma civilização futurista, que se preocupa com a prevenção, a previsão, com o ecodesenvolvimento. Se na primeira era da modernidade havia um futurismo revolucionário e que exigia sacrifício, agora se vive um neofuturismo, conciliado com as normas do presente, de bem-estar, emprego, consumo. Se na pós-modernidade vivia-se o carpe diem, na hipermodernidade o foco não está apenas no momento, já que se vive a preocupação com as incertezas do futuro. As contradições temporais têm efeito na vida de cada um. Está-se passando a dar prioridade ao amanhã em relação ao rápido. O presente integra o amanhã. Passa a haver um contra-peso entre o reino do efêmero e a busca de duração. Agora que o tempo está liberado há o retorno sobre si. Cada um faz suas escolhas, o que implica em se responsabilizar pelas conseqüências, em subjetivação. A pressão à individualização e o enfraquecimento do poder de organização coletivo sobre os sujeitos traz os novos sintomas, sentimento de insuficiência e de autodepreciação, compulsividade, depressões, ansiedades, tentativas de suicídio. Qual é a coragem do homem frente a seu desejo, nos tempos de hoje? Esta questão interessa ao psicanalista.

São Paulo, 10 de agosto de 2004.

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* Este texto resulta de discussões no Projeto Análise, coordenado por Jorge Forbes, sobre o livro de Gilles Lipovetsky e Sébastien Charles Les Temps Hypermodernes,, Ed. Grasset, 2004.

** Lipovetsky, professor de filosofia na Universidade de Grenoble, trabalhou este tema em seminário, coordenado por Sébastien Charles, no Collège de Philosophie,na Universidade de Sherbrooke, Canadá. Daí resultou o livro Les Temps Hypermodernes.