ESTUDOS

O TOQUE DA RAVE1

Italo Venturelli, Margaret Puntel, Rosana Morel e Teresa Genesini

Você já foi a uma festa rave?

Nosso grupo de pesquisa, aqui do IPLA, foi. Uma rave num sítio perto de Campinas, Kaballah – day&nigthparty. Quase 15.000 jovens - uma loucura! No começo achamos divertido, o pessoal animado, o lugar bonito e o anoitecer foi bem legal. Mas depois de algumas horas, aquela batida já estava cansando. E as tendas com músicas alternativas, lembrando músicas orientais, não eram muito animadoras. O frio começou a incomodar, não havia como se proteger do vento.

Como nesse tipo de festa, rolava de tudo. As pessoas se abraçavam, se beijavam, pareciam felizes. Uma sensação de liberdade - embora a revista na entrada proibisse tudo, até maçãs e balas na sacola.

Lembrança de Woodstock. Seria uma volta? O que esse tipo de evento atrai nesses jovens? Onde estariam Jane Joplin, Joe Cocker, Jimi Hendrix? A música era marcada pela significação. Hoje o palco lembra um altar onde o DJ (disk jockey) reina para o público. Não há letras, só a batida sempre igual, como uma cantiga tribal, uma espécie de mantra. O DJ mobiliza aquelas 15.000 pessoas; mas aparentemente, elas não se importam com o que acontece naquele palco, só interessa o som. E o copo na mão. Ou o cigarro. E quem está do lado - para dançar junto, abraçar, exibir-se com malabaris, mostrar o corpo e suas habilidades. Há quem dance sozinho. Muitos parecem em transe.

Mas se quiser ficar com alguém, é só deixar rolar.

Esta viagem foi parte do estudo sobre rave, tema deste trabalho, cujo objetivo é pesquisar uma resposta ao mal-estar contemporâneo, captada por Jorge Forbes em 1998, ao iniciar o estudo sobre o fenômeno da música eletrônica. As festas rave e a música eletrônica são novas soluções para o mal-estar que advém da mudança de paradigma, da quebra do eixo vertical.

A quebra do eixo vertical corresponde, em psicanálise, a uma desorientação da pulsão – conceito que Freud inventou para diferenciar de instinto, indicando a plasticidade da satisfação humana em face da civilização: quando muda o laço social, o homem muda. Nessa quebra, novas doenças surgem, assim como novas soluções. (FORBES: 2005b, p. 6)

Foi inspirado em Freud o tema de estudo deste bimestre no Corpo de Formação em Psicanálise – O mal-estar na civilização. Quanto ao mal-estar, Freud o denunciou como conseqüência da renúncia ao gozo imposta pela civilização. Com isso, fortaleceu o mal-estar. Trouxe ao homem a terceira ferida narcísica, depois de Copérnico e de Darwin. Surpreendeu ao dizer do inconsciente, que o homem não tem autonomia sobre si mesmo; causou escândalo ao colocar a nu a sexualidade infantil. E outras. A psicanálise foi considerada inimiga da civilização e execrada como um perigo social – afirmou Freud em seu texto de 1925, Resistências à psicanálise.

Freud dizia, alguns anos antes de sua morte, que o combate não estava ganho, mas acreditava que a fenda aberta pela psicanálise não se fecharia jamais; poder-se-ia duvidar disso, pois não esqueçamos que a existência do inconsciente depende da atenção que se lhe dá: o analista é responsável por isso. (Cottet, 2007).

Escolhemos estudar as festas rave como uma busca de saída ao mal-estar na civilização.

Uma forma de leitura da rave pode ser tomada com base em Lévi-Strauss. Este autor, em seu texto “A Eficácia Simbólica” compara o xamã ao psicanalista, falando sobre a eficácia simbólica no tratamento. Podemos relacionar este texto com a primeira clínica de Lacan, em termos da primazia do significante e do simbólico. Tratando da importância da palavra e da estrutura do mito, Lévi-Strauss tece relação com a psicanálise.

Alguns autores comparam o DJ ao xamã, pois, assim como o xamã, o DJ conduz as pessoas a um estado de unidade, de coletividade. Para Chies, nas festas xamãs veneravam-se a música, a experiência coletiva compartilhada por meio da dança tribal, do estado alterado da consciência provocado pelas batidas repetitivas e/ou uso de drogas. A estética da música repetitiva lembra os rituais dos povos indígenas e os mantras onde a repetição leva à transcendência. Freud toma emprestado de seu amigo Romain Rolland2 a noção de sentimento oceânico, como uma sensação de “eternidade”, um sentimento de algo ilimitado, que explicaria a origem da religião, denunciando-a como sendo uma ilusão. Freud diz deste sentimento, no adulto, como a busca do narcisismo ilimitado. Seria possível, na rave, experienciar esse tipo de sensação, ou seja, algo como o sentimento oceânico? Freud ainda cita outro amigo que lhe relata que através de experiência com ioga, consegue-se um afastamento do mundo e “a pessoa pode evocar em si mesma novas sensações e cenestesias, consideradas como regressões a estados primordiais da mente ... Não seria difícil descobrir aqui vinculações com certo número de obscuras modificações da vida mental, tais como os transes e os êxtases.” (Freud, 1930, p. 91)

Ressalta-se um fenômeno que sempre esteve presente na cultura e nos rituais xamânicos: a música. Os instrumentos musicais, como os tambores, chocalhos, sempre foram usados para induzir as pessoas ao transe, tocando o corpo de um modo que está além das palavras. O tambor associado a cânticos, sinos, e outros instrumentos criam um ambiente muito propício para o transe.

Uma forma totalmente nova de captar o que se passa na rave é desenvolvida por Jorge Forbes. Em seu texto “Geração Mutante” (2004), nos aponta novas formas de apreender o gozo do corpo, que não passa pelo circuito integral da palavra. No cenário em que o Outro não existe, temos a música eletrônica como um exemplo do curto-circuito da palavra. A sua estrutura foge à ortodoxia da canção tradicional (início, refrão, meio, refrão, fim, refrão), é uma música binária, eternamente inacabada, sem início, sem meio, sem fim, como um mantra tecnológico, cuja finalidade é fazer a pessoa “viajar”.

Para Forbes (2005a) o laço social na modernidade era francamente orientado por um eixo vertical, a tradição era levada a sério. O pai e seus representantes detinham as chaves do saber seguro, e davam a direção a seguir. A hipermodernidade e a globalização trazem uma estrutura horizontal, descentralizada. Nessa mudança de paradigma, da era industrial para a era da informação, a música eletrônica é um exemplo de solução inusitada para viver em uma época sem padrão.

Lipovetsky (2004) vê a passagem do capitalismo de produção para uma economia de consumo e de comunicação de massa. Criador do conceito de hipermodernidade, este autor considera que vivemos atualmente numa sociedade reestruturada completamente pelas técnicas do efêmero, da renovação e sedução permanentes.

Jorge Forbes acredita que na era globalizada o saber consagrado transformou-se em um genérico. Um clique é tudo o que é necessário para acessar o saber. Na esfera da música eletrônica, Souza (2007) explica que assim como o mantra destrói o individualismo, a música eletrônica desmonta o pop star (líder musical), observa-se o protótipo de uma sociedade sem líderes, governos. A música eletrônica e seus instrumentos de produção democráticos: samplers3, sequencers4, vinis, pick ups, etc. dão poderes de importância e criação artística ao homem comum, porém com talento, e resgata o ideário punk do “faça você mesmo” (do it yourself). Na cultura da música eletrônica, os artistas inventam pseudônimos para serem conhecidos apenas por sua arte, pois é a música que importa. Deste modo, a música serve como eterno banco de dados, disponível para a manipulação, pertencente a todos, isto é, não tem dono e destrói aspectos de “estrelismos” difundidos pela mídia, de posse sobre a autoria.

No panorama da música eletrônica encontramos as tribos de clubbers e de ravers. Segundo Chies, a formação destas tribos tem como referencial comum o gosto pela música eletrônica. O que os diferencia é que os clubbers são os freqüentadores assíduos de casas noturnas, e os ravers são os freqüentadores da rave – festas realizadas em espaços abertos, fora do perímetro urbano, também ao som da música eletrônica.

Para Coutinho, o que caracteriza as tribos urbanas, da qual fazem parte os clubbers e os ravers, é que a adesão a elas é sempre fugaz, não há um objetivo concreto para estes encontros que possa assegurar a sua continuidade. Trata-se apenas de redes de amizades pontuais, que se reúnem com a finalidade de reafirmar o sentimento que um dado grupo tem de si mesmo. Souza afirma que o que se busca nas tribos é encontrar o outro e partilhar com o outro algumas emoções e sentimentos comuns.

Na rave todos dançam juntos, porém à sua maneira, porém sós. Lévi-Strauss identificou que nas danças tribais as pessoas eram conduzidas a um estado de unidade, de coletividade. Hoje, na rave, temos o que Forbes chama de monólogos articulados, ou seja, as pessoas estão juntas sem necessidade de se compreenderem. A dança é livre, de acordo com o jeito de cada um sentir a música.

Segundo Souza, essa dança coletiva é ainda hedonista, despolitizada e pagã. Hedonista porque traz o prazer pelo prazer imediato de apenas dançar. É despolitizada porque é uma cultura sem pátria, globalizante e universal, e sem bases em partidarismos, sem preconceitos ideológicos. E é pagã, pois nenhuma religião é eleita como coletiva, nenhum deus é eleito como o deus de todos. O único deus é a música tribal.

O DJ e produtor Luiz Felipe Forbes, de nome artístico Skulptor, entrevistado pela Rádio Lacaniana, afirma que a música eletrônica segue o mesmo padrão da música tribal. Tem batimentos fixos e repetitivos. Apresenta o mesmo ritmo das tribos africanas. Luiz Felipe conta que no início havia muitos hippies participando das raves já que essas festas faziam parte de um movimento alternativo. Esse é um cenário mutante. As festas rave hoje são mais estruturadas, atraem um público grande e variado, não se limitam a clubbers e ravers e têm grande apelo comercial.

A rave pode ser vista como uma forma de circunscrever o gozo, uma forma de elaboração do limite. As pessoas se juntam no “um-a-um”, cujo paradigma do laço social é a horizontalidade. Numa analogia com a análise, lembramos que Forbes (2005 c), respondendo a Abujamra, diz que “a análise é uma intervenção que o analista faz sobre o monólogo da pessoa. Por isso usa o divã.” Quanto à rave, Forbes se refere a monólogos articulados. É uma nova forma de associação. Se na época de Woodstock o laço social era marcado pela rebeldia e a música marcada pela significação, agora os jovens inventam nova forma de associação e a música não diz, mas toca.

A música eletrônica não tem um sentido comum. É uma música que não necessita de compreensão. Eu ouço uma música com outra pessoa, danço com ela mas não reparto as mesmas palavras ou idéias. (Forbes, 2007)

Se Freud criou um “software” para o homem da Viena 1900, Lacan, como um visionário, desenvolveu outro para o homem hipermoderno, recortado neste trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHIES, T. C. Novas formas de viver:Clubbers e Ravers. [online] http://www.aguaforte.com/antropologia/Clubbers1.html Acesso: 10 de junho de 2007.

COTTET, S. Freud et son actualité dans le malaise dans la civilisation. La Cause freudienne, n. 66, jun 2007.

COUTINHO, L. G. Da metáfora paterna à metonímia das tribos:um estudo psicanalítico sobre as tribos urbanas e as novas configurações do individualismo. Tese de Doutorado, PUC-RJ. [online] http://www.rubedo.psc.br/Artigos/tribus.htm Acesso: 10 de junho de 2007.

LÉVI-STRAUSS, C. A eficácia simbólica. In:________. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1975, p. 215-265.

Lipovetsky , G., Charles, S. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarola, 2004.

FORBES, J. E ntrevista de Jorge Forbes para a Revista A Tribuna, 21 de fevereiro de 2007. http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=24&i=18

FORBES, J. A psicanálise do homem desbussolado: As reações ao futuro e o seu tratamento, Opção Lacaniana, n. 42, 2005 (a), p. 30-33.
http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=23&i=72 Acesso: 24 de junho de 2007.

 FORBES, J. A Invenção do Futuro. Barueri, SP: Editora Manole, 2005 (b).

FORBES, J. Entrevistado por Antônio Abujamra, Provocações – TV Cultura, 19 e 26 de junho de 2005 (c).

FORBES, J. Geração Mutante.In:________. Você quer o que deseja? 4ª ed., São Paulo: Editora Best Seller, 2004, p. 24 – 28.

FORBES, L. F. Entrevistado pela Rádio Lacaniana – IPLA, 21 de junho de 2007.
mms://wme.psicanaliselacaniana.com/psicanaliselacaniana.com/FelipeForbes_Rave.mp3

FREUD, S. (1930) O mal-estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI, p. 81-177.

FREUD, S. (1925) Resistências à psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIX, p. 263-279.

SOUZA, C. M. D. A cibermúsica, djing, tribos e cibercultura [online]. Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporânea , UFBA (Facom).
http://www.pragatecno.com.br/ensaio2.html Acesso: 23 de junho de 2007.


Referências:

1 Trabalho desenvolvido no segundo módulo do “Corpo de Formação em Psicanálise 2007 ” do Instituto da Psicanálise Lacaniana, sob tutoria de Elza Macedo.

2 Amigo de Freud, Romain Rolland, Prêmio Nobel de Literatura 1915, escritor e músico francês, fortemente influenciado pela filosofia indú.

3 Slampers: máquinas que tiram amostras de sons para serem coladas ou repetidas infinitamente.

4 Sequencers: sintetizadores que reproduzem tunes (melodias, ritmos e linhas de baixos que podem ser alternados, manipulados).

Veja o trabalho na íntegra (Versão para imprimir)