Uma história paradoxal

Teresa Genesini

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No livro Um Antropólogo em Marte, o Dr. Oliver Sacks relata o caso de Temple Grandin, uma autista singular. Conheça essa mulher que, na infância, não tinha perspectiva de um desenvolvimento normal, mas conseguiu se tornar PhD em biologia

      Tema central do livro Um Antropólogo em Marte, do neurologista Oliver Sacks – autor dos best sellers Tempo de Despertar e O Homem que confundiu sua mulher com um chapéu –, o autismo foi descrito quase que simultaneamente por Leo Kanner e Hans Asperger, já nos anos 1940. Kanner descrevia o autismo como um desastre consumado, enquanto Asperger, que mais tarde batizaria a “Síndrome de Asperger”, achava que o autismo podia ter certos aspectos positivos e compensatórios, como uma “originalidade particular de pensamento e experiência, que pode muito bem levar a conquistas excepcionais na vida adulta”.
      Os casos estudados por Kanner são, em maioria, de crianças com retardo mental, com convulsões e sinais neurológicos “suaves”, com distúrbios linguísticos complexos e estranhos. As crianças autistas estudadas por Asperger , ao contrário, tinham geralmente inteligência normal ou muitas vezes superior e menos problemas neurológicos. Ambos trataram o autismo clinicamente e fizeram descrições com tamanha riqueza e precisão, que mesmo hoje é difícil superá-los.
      Até a conclusão do livro, em 1995, que a incidência de autismo era de um em mil, ocorrendo em qualquer lugar do mundo, com características constantes até nas culturas mais diferentes. Normalmente a disfunção só é detectada no segundo ou terceiro ano de vida da criança. Porém, a causa do autismo ainda tem sido motivo de discussão. Asperger via o autismo como uma deficiência biológica de contato afetivo – inata, congênita, análoga a uma deficiência física ou intelectual. Kanner via o autismo como um distúrbio psicogênico, um reflexo de maus pais e, mais especificamente, de uma “mãe geladeira”, distante, fria. Naquela época, o autismo era frequentemente confundido com esquizofrenia infantil. Nos anos 1960, essa tendência de culpar a mãe pelo autismo dos filhos começou a ser revertida e a natureza orgânica do autismo passou a ser aceita.
      Sacks argumenta que, geneticamente, o autismo é heterogêneo – às vezes dominante e outras vezes recessivo. Afirma que o autismo tem uma disposição biológica, sendo em alguns casos genético. Há estudos confirmando que pode ser uma consequência de problemas metabólicos (como hidrocefalia) e outros mais recentes, afirmando que o autismo pode ser causado pela exposição a agentes tóxicos.
      O neurologista é taxativo ao dizer que cada caso de autismo é singular – não há duas pessoas com autismo que sejam iguais. Sua expressão, em cada caso, é diferente. Em sua experiência com autistas, Sacks encontrou casos como os descritos por Kanner e outros como os descritos por Asperger. Descreve comportamentos de autistas que pareciam normais, mas, quando se aproximava deles, notava hábitos estranhos. As crianças estavam empenhadas em atividades solitárias e repetitivas, ninguém estava realmente brincando – sozinho ou com qualquer um dos outros. A maioria das crianças parecia fisicamente normal, e o sinistro era sua distância, sua inacessibilidade. Alguns já na adolescência começam a emergir, a falar fluentemente, a desenvolver habilidades sociais – muito mais difíceis para essas crianças do que qualquer outro aprendizado acadêmico – e a criar aparências sociais que pudessem apresentar ao mundo. O autor viu crianças de todo tipo: algumas inteligentes, outras ligeiramente retardadas, algumas desembaraçadas e outras tímidas – mas todas com sua personalidade ímpar. Asperger escreveu sobre uma “inteligência autista” – uma inteligência praticamente intocada pela cultura e pela tradição – pouco convencional, não ortodoxa, estranhamente “pura” e original, análoga a uma inteligência criativa.


Temple Gradin, antropóloga em Marte


      Antes de conhecer Temple Gradin, Oliver Sacks leu sua autobiografia, o que lhe provocou desconfiança. Como poderia uma autista ter um autoconhecimento, compreender os outros e ainda escrever uma autobiografia? Porém, é sabido que, diferentemente das crianças normais, os autistas se lembram de coisas do segundo e até do seu primeiro ano de vida. Lendo sua autobiografia e seus artigos tem-se idéia de como ela era estranha e diferente de uma criança normal: aos seis meses começou a ficar enrijecida nos braços da mãe, aos dez meses a arranhá-la “como um animal encurralado”; aos dois anos apresentava um olfato notável e ausência de modulação nos ouvidos – como microfones desamparados, no volume mais alto. Aos três anos, a menina tornou-se destrutiva e violenta. Em vez de barro para modelar, usava suas fezes e espalhava suas criações por todo o quarto. Desenvolveu um poder de concentração tão grande que podia criar seu próprio mundo, um lugar de calma e ordem no meio ao caos e ao tumulto. Com total ausência de fala até os três anos, foi levada a um neurologista que a diagnosticou como autista, sem perspectiva de ter um desenvolvimento bem sucedido como pessoa normal.
      O que chamou a atenção de Oliver Sacks para o caso de Temple Grandin é como ela tinha conseguido, apesar de sua infância praticamente ininteligível – com seu caos, suas fixações, sua inacessibilidade, sua violência – tornar-se uma bióloga e engenheira bem sucedida. Decidido a estudar seu caso, resolveu então visitá-la.
      Sacks conheceu Temple Grandin quando ela já era Professora-Assistente no Departamento de Ciências Animais da Colorado State University, onde se encontraram pela primeira vez. Temple tinha na época pouco mais de quarenta anos, alta, encorpada e vestia-se sempre de jeans e bota de cowboy. Ela falava bem e de maneira clara, mas com certa fixidez e ímpeto ininterrupto. Cada sentença e cada ideia proferida, uma vez iniciadas tinham que ser finalizadas. Nada era deixado implícito, solto no ar. Faltava-lhe uma percepção pessoal de como os outros sentem – como as nuances, as sutilezas sociais de convivência. Ela podia entender emoções “simples, fortes, universais”, mas ficava confusa com as mais complexas e os jogos com que as pessoas se envolviam. Foi ela quem inspirou o título do livro, ao afirmar: “A maior parte do tempo eu me sinto como um antropólogo em Marte.”
      Sua vida resume-se a seu trabalho. Ela mesma disse inúmeras vezes a Sacks: “Meu trabalho é minha vida. Não há muita coisa além disso.” Em termos profissionais, ela é extraordinariamente bem-sucedida, embora não possa captar outras intenções humanas, sociais e/ou sexuais. Seu trabalho de PhD foi sobre os efeitos de um meio ambiente enriquecido ou empobrecido no desenvolvimento dos porcos. Comparava os porcos em ambientes empobrecidos a autistas, por serem hiperexcitáveis e agressivos. Os animais deviam ser sacrificados ao final da experiência para que seus cérebros fossem examinados. Ela descreveu como os porcos confiavam nela ao final do experimento, a ponto de permitir que os conduzisse em sua última caminhada. Ela acalmara os bichos, afagando-os e conversando com eles, enquanto eram mortos. Ficou muito abalada com suas mortes – chorava sem parar.
      Após o trabalho, Temple começou a dar conferências e escreveu centenas de artigos sobre o comportamento animal e sobre o autismo; é consultora em comportamento animal para indústrias ligadas à criação e abate de animais para produção de commodities.
      Numa visita a uma fazenda de gado, Temple afirmou: “Agora sinto-me em casa. Quando estou com o gado, não tem nada a ver com cognição. Sei o que a vaca está sentindo”. E prosseguiu: “É diferente com gente”. Sacks ficou impressionado com o abismo entre o reconhecimento imediato e intuitivo que       Temple tinha dos signos e estados de espírito dos animais e sua extraordinária dificuldade em compreender os seres humanos, seus códigos e sinais, a maneira como se comportam.
      Temple desenvolveu uma máquina que pressiona o corpo como se fosse um abraço – quando era menina queria muito ser abraçada, mas, ao mesmo tempo ficava aterrorizada com qualquer contato. O modelo final foi um aperfeiçoamento de várias tentativas. Conta que se não fosse a máquina não teria suportado os anos da faculdade, principalmente os dias mais tumultuados, pois não poderia se voltar para qualquer ser humano em busca de consolo – só com sua máquina conseguia se tranquilizar. Não é apenas prazer e relaxamento que ela obtém com sua máquina. Através do equipamento, ela vivencia um sentimento pelos outros. Nos momentos em que é abraçada pela máquina lembra-se de sua mãe, sua tia predileta e seus professores. É como uma porta que se abre para um mundo emocional, ao qual ela não teria acesso sem essa estratégia.
      Temple define seu pensamento como visual – é capaz de reproduzir imagens e esquemas idênticos ao capturado por sua memória visual. Ela diz que todo autista tem um forte pensamento visual, como ela. Narra que um acontecimento mudou a sua vida aos 15 anos: ficou fascinada pelas calhas afuniladas utilizadas para segurar o gado e seu professor de ciências deu consistência a isso, sugerindo que ela construísse sua própria calha afunilada. Foi quando criou sua primeira máquina de abraçar. A partir de então se interessou por ciências e biologia começando com suas invenções e considerações sobre fazendas de criação. Para ela a linguagem social sempre foi difícil – nunca entendeu alusões, ironias, metáforas e brincadeiras; enquanto que a linguagem técnica sempre foi fácil para ela, dando-lhe acesso à ciência. Mas, desde a adolescência percebeu que nunca poderia desfrutar de prazeres normais – amor, amizade, lazer – então decidiu que ficaria solteira e dedicaria sua vida à ciência. Ao final do encontro disse a Oliver Sacks:
– Você olha o regato, as flores, vejo quanto prazer você tira disso; a mim isso não é dado.
– Você tira um tal prazer do pôr do sol; queria conseguir o mesmo. Sei que é bonito, mas não o capto.
– Se pudesse estalar os dedos e deixar de ser autista, não o faria – porque então não seria mais eu. O autismo é parte do que eu sou.
Sacks finaliza dizendo que, a partir de 1990, houve uma explosão de livros escritos por e sobre autistas, mas nenhum deles se compara ao livro de Temple Grandin: Emergency: labled autistic.

Vale ver a TED Conference da bióloga, com legenda em português: “O mundo necessita de todos os tipos de mente”. Clique aqui para acessar o vídeo.

Um antropólogo em Marte – Sete histórias Paradoxais
Autor: Oliver Sacks
Editora: Companhia das Letras
Tradução: Bernardo Carvalho